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Somos todos filhos pródigos

Quando vemos parentes e amigos abandonarem a fé agimos como o pai.
Daniel Smith, de 23 anos, entrou para a Universidade de Cedarville, uma faculdade cristã dos Estados Unidos, em 2008. Por fora, ele parecia um cristão genuíno – mas, por dentro, era como um filho pródigo. Embora educado na fé, o rapaz tinha dúvidas acerca de algumas doutrinas essenciais, mas sentia medo de perguntar a colegas e professores a respeito de Deus, inferno e outros temas básicos do Cristianismo. "As pessoas provavelmente me viam como o típico bom menino cristão", lembra. "Eu me esforçava para manter essa imagem. No íntimo, contudo, minha fé estava completamente morta."

Um de seus colegas, Steven, que acabou se tornando seu companheiro de quarto, demonstrava carisma e espiritualidade contagiantes. "Nós tínhamos muitas afinidades e ficamos muito unidos", conta Smith. "O mundo era nosso e nos tornamos como irmãos". Mas a mãe de Steven foi diagnosticada com um câncer agressivo. 

A evolução da doença foi rápida e fulminante. Steven, então, começou a se sentir frustrado com a forma banal com que os cristãos respondiam ao sofrimento de sua mãe – e ficou furioso com Deus. Quando ela morreu, o rapaz aderiu à meditação e ao misticismo oriental em busca de consolo. Quando o último ano de faculdade chegou, ele já havia assumido a homossexualidade e abandonado a fé. Aquilo fez Smith refletir bastante sobre a própria vida.

Alise Wright é uma dona de casa com vida bem diferente dos dois universitários. Casada com Jason, ele levava uma vida cristã dentro do convencional, com frequência regular à igreja e a prática de algumas disciplinas espirituais, como oração e leitura bíblica, com os quatro filhos. Um belo dia, o marido, cristão confesso, voltou de uma consulta com o terapeuta dizendo que não acreditava mais em Deus. Ela não conseguiu compreender. 

"Meu marido cresceu em um lar evangélico. Quando começamos a namorar, ele estudava teologia e liderava o louvor na igreja. Eu não tinha dúvidas de que sua fé era verdadeira – maior que a minha, até", reconhece.

Agora, depois de 12 anos de casamento, eis Jason se declarando ateu. "Eu estava apavorada", diz Alise. Ninguém tocou no assunto por duas semanas, e ela só chorava – entre outras coisas, porque não sabia se Jason queria continuar casado com uma crente. Eles continuaram juntos, e depois de um tempo anunciaram a mudança radical aos filhos, às duas famílias e à igreja. Agora, quatro anos mais tarde, segundo Alise Wright, seu marido continua sendo seu "amigo mais próximo". Mas a situação é complicada.

DIFICULDADE DE CRER

Em algum momento de suas vidas, um em cada três americanos deixará o Cristianismo, de acordo com um estudo feito em 2011 no Journal of religion and society. Chamados de "desconvertidos" ou "ex-cristãos", eles são o alvo de uma nova preocupação entre as denominações evangélicas que estão vendo seus números diminuírem. Pesquisadores e blogueiros procuram razões para essa redução da fé individual de pessoas até então dedicadas ao Evangelho. 

Uma delas é a dificuldade intelectual de crer, principalmente entre aqueles com maior preparo acadêmico. O comportamento equivocado de pastores que dão mau testemunho na área sexual ou financeira, ou agem de maneira autoritária e intolerante, também, assim como o sofrimento sem explicações plausíveis. Mas o fenômeno dos desconvertidos não é novo. Ele já é visto, pelo menos, na parábola do Filho Pródigo, contada por Jesus e registrada em Lucas 15.11-32.

Mas, e quanto às pessoas deixadas para trás pelos filhos pródigos, como o pai da narrativa bíblica? E aqueles que amam os desconvertidos? Os que ficaram responsáveis por manter famílias e comunidades? Existem poucos recursos teológicos e práticos para os dois em cada três cristãos que permanecem com o Pai enquanto observam o "irmão mais novo" partir. 

A parábola é centrada no relacionamento entre um pai e seus dois filhos – porém, a essência da história permanece a mesma, seja aquele que se afasta um filho, um irmão, o cônjuge, o pai ou um amigo chegado. É que a história do Filho Pródigo, assim como a do Natal ou da Páscoa, engloba todo o Evangelho.

O pai, ansioso para se reconciliar com o filho, representa Deus, o Pai, ou Jesus, que está contando a história. O ressentido filho mais velho representa os fariseus, que faziam parte dos ouvintes originais de Jesus. A parábola deixa clara para nós, crentes e salvos pela graça, que atitude devemos ter; contudo, é provável que, ao sermos confrontados por um filho pródigo de carne e osso, não tenhamos a atitude do pai e nem a do filho mais velho; normalmente, agimos como ambos.

Para a maioria de nós, é fácil ser influenciado pelo cálculo rigoroso do filho mais velho. Um dos motivos de sua indignação foi justamente a questão financeira. Assim como na parábola dos trabalhadores (Mateus 20.1-16), é muito desagradável que aqueles que chegam tarde recebam o mesmo que aqueles que sempre foram fiéis.

Sim, nós queremos a graça, mas no fundo de nossos corações, se formos honestos, teremos de admitir que o que queremos, mesmo é graça com justiça. Isso estava na base do temor de Alise Wright com sua situação – ela receava que os irmãos da igreja a culpariam pelo fato de seu marido ter abandonado a fé, como se ela não tivesse feito o bastante. "Quando as pessoas tentam consertar as coisas, tenho uma sensação de insegurança. Isso dói", desabafa Alise. "O grande médico é Jesus. Ele pode fazer por nossos filhos pródigos o que não conseguimos."

SOBRECARGA DE CULPA

Acreditar que nós, cristãos fiéis, podemos consertar nossos filhos pródigos acrescenta uma sobrecarga de culpa às nossas vidas, como aconteceu com a professora aposentada Izolda Sant'anna, crente assembleiana de Duque de Caxias (RJ) durante anos. Ao se recordar das brigas que tinha com Marcella, a filha então adolescente, por causa das roupas apertadas e das festas que frequentava, ela agora percebe que os atritos eram por motivos que iam muito além disso.

"Na verdade, o que estava em jogo mesmo era a minha pretensa capacidade de controlá-la e fazer com que ela vivesse do meu jeito, embora fosse uma pessoa diferente de mim", reconhece. "Era como se através daquelas brigas, eu estivesse atacando a personalidade dela", diz. O aconselhamento e a ajuda das amigas de fé ajudaram Izolda a desistir do papel do filho mais velho; ela não podia assumir responsabilidades que são apenas do Pai; e um pai, embora tente ser "perfeito", não garante a fé de um filho. Afinal, o Pai de Adão e Eva era perfeito e, mesmo assim, eles se rebelaram contra ele.

"Essa provação esclareceu muitas coisas em minha vida", diz a aposentada. Tempos depois, Marcella, já na idade adulta, voltou ao Evangelho e hoje é uma crente fiel, que cria a própria filha da mesma maneira como foi educada. "Só aprendi que não há caminho bom fora de Jesus depois de muito sofrimento", testemunha. Mas a igreja nem sempre sabe como ministrar aos filhos pródigos ou àqueles que os amam. Alise Wright diz que uma das maiores dificuldades de estar casada com uma pessoa nessas condições foi a forma como isso afetou o seu relacionamento com outros cristãos. "Eu o protejo muito, e, como resultado, às vezes mantenho à distância pessoas que considero como uma ameaça a ele". 

Esse tipo de misericórdia, misturada com certa dose de controle, surge, em parte, do legado dos evangélicos. Muitas vezes, não sabemos como reconciliar nossa tradição cristã com a verdade universal de que o Evangelho, nas palavras do próprio Cristo, é para os doentes, os perdidos – e agimos como se a Igreja fosse para os puros. Mas as mesmas passagens de Paulo que usamos corretamente para nos posicionar de maneira firme contra o pecado oferecem a evidência de que pecados têm ocorrido na Igreja desde o começo. Então, por que deveríamos esperar que a Igreja moderna fosse diferente daquela que existiu no primeiro século?

Ao invés de nos vermos como o pai e, ao fazê-lo, continuarmos desempenhando o papel do filho mais velho – afinal, o que ficou em casa estava essencialmente usurpando a autoridade do pai ao repreender o irmão –, nós deveríamos nos considerar como sendo iguais ao filho pródigo: iguais na necessidade de graça e iguais como receptores de tal graça. 

Nós nos consideramos como aqueles que estendem a graça aos filhos pródigos, mas estamos simplesmente compartilhando a graça que recebemos e continuamos a receber. Precisamos, assim, parar de alimentar essa obsessão cristã de consertar todo mundo. Não há magnanimidade em expandir a graça, simplesmente porque todos nós precisamos dela.

AMOR RADICAL

Foi isso que aconteceu com Daniel Smith. Em meio às dúvidas de seu colega de quarto, Steven, ele sentiu-se atraído a Deus. "O pico dos questionamentos de Steven foi provavelmente meu período mais potente de crescimento espiritual", conta. A agonizante luta de Steven em busca de respostas parecia libertar Smith para buscar as respostas para si mesmo. 

Apesar de terem continuado a ser colegas de quarto, os dois rapazes começaram a se falar cada vez menos. Depois da formatura, no ano passado, cada um seguiu o seu caminho. Smith agora está firme em sua fé e espera, um dia, ensinar teologia.

Seja na igreja ou fora dela, vagando pelos montes ou trabalhando nos campos do Senhor, todos precisamos do amor radical do Pai da mesma maneira – o filho mais velho não precisa menos disso do que o filho pródigo. Assim, no âmago da própria noção de prodigalidade, encontra-se um intrigante paradoxo. 

A palavra pródigo, que significa "abundante", carrega tanto o sentido negativo de desperdício, significado aplicado ao filho mais novo, quanto a noção de extravagante, exuberante ou esbanjador – e, dessa maneira, aplica-se igualmente ao filho mais novo e ao pai nas polaridades correspondentes.

O amor do pai é mais prodigioso do que os caprichos do filho. O amor que o pai mostra ao filho pródigo – tanto quando ele vai embora quanto em seu retorno – nada mais é do que extravagante. É um amor cego aos erros do passado e às consequências do presente; um amor que oferece ao amado a liberdade para desperdiçá-lo sem perturbá-lo ou tentar forçar uma atitude sábia de sua parte. É um amor que espera pacientemente, em oração e até mesmo em sofrimento. 

Muitos teólogos concordam que, ao solicitar sua herança, o que o filho pródigo estava pedindo mesmo era a morte do pai. Considerando a morte necessária para a salvação de todos nós, as nossas orações pelos filhos pródigos não exigem menos do que isso. Somos filhos pródigos – sim, todos nós.

Cristianismo de hoje

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